Pelo Dia fora e pela noite dentro

sábado, 20 de junho de 2009

Animais muito peculiares



Porque estou velho, as memórias da juventude longínqua estão mais presentes e é o meu maior entretenimento e prazer recordá-las. Sem dificuldade, evoco os dias juvenis que passava pela encantadora cidade da minha meninice, quando, gulosamente, olhava ao meu redor e apreendia os detalhes que, juntos, lhe davam a beleza que me fascinava. A par das flores que a cobriam, do rio que murmurava encantos sob os choupos das suas belas margens, existiam as pessoas e os animais, peculiares, que lhe emprestavam um colorido único. Por isso os recordo vividamente.
Lembra-me, por exemplo, o cavalo negro que me obrigava a ir, todos os dias, para a esquina da farmácia do Dr.Nini, na confluência da rua Larga com a rua das Poças. Sem falha, ele vinha num trotar suave, sempre igual, só quebrado pelas paragens obrigatórias às portas das tabernas, altura em que batia duas vezes a pata da frente e chamava o taberneiro, que, passados alguns momentos, surgia com uma “selha” de tinto, a entregava ao dono do cavalo e este a ingurgitava de um respiro. A cena repetia-se em todas as tascas do circuito, aquém e além da ponte dos arcos, pela Levada até à Estrada do Padrão; aí, volvia pelo mesmo caminho, mas sem qualquer paragem. O dono podia puxar pelas rédeas, travar o “toneau”, chicoteá-lo ou gritar-lhe que parasse, que ele não obedecia; só parava no portão ao cimo da ladeira que vai da rua das Poças à ponte da Vala. Terminara a sua missão e ele cumprira-a com rigor, só permitindo ao dono aquela dose diária… No dia seguinte, voltaria ao mesmo circuito e eu à mesma esquina para o ver passar.
Outro animal peculiar que percorria as ruas de uma cidade monotonamente calma, era o cão Oliveirinha. Era um rafeiro esguio, direi mesmo esquelético, que seguia constantemente o Manel Jeitoso. Seguia-lhe os passos e, também, as bebedeiras.
O Jeitoso era uma figura popular em Tomar nos anos quarenta e cinquenta, que tinha por hábito, aos sábados, de se embebedar de caixão à cova. Nos outros dias também aquecia com o tinto, porém o sábado era-lhe sagrado… Era a sua festa báquica! Durante o resto da semana fazia recados, pequenos biscates e pedia esmola.
Dormia num esconso na rua de S.Sebastião e, no seu dia festivo, levantava-se com os primeiros alvores; corria para o mercado do peixe, na altura por detrás dos Paços do Concelho, já escoltado pelo Oliveirinha. Os peixeiros, que já sabiam o que ele queria, davam-lhe mais alguns tostões, e ele iniciava a sua peregrinação numa taberna na rua do Pé da Costa. Seguia, depois, para outra frente à Várzea Grande, ainda sem tribunal, e, aqui, iniciava, realmente a sua festa: bebia, bebia até cambalear. Juntava-se, por essa altura, uma velhota, pequenina, de cabelos loiros acinzentados pelos anos, de rosto rubicundo, de boca permanentemente fechada, apenas a abrindo para emborcar a “ selha “ que, generoso, o Jeitoso pagava. O Oliveirinha também se emborrachava, mas às custas do taberneiro, pois sempre que este se distraía, escapulia-se para detrás do balcão e lambia o vinho que escorria nas aparadeiras dos barris.
O trio, já bem entornado, iniciava então a peregrinação: rua dos Arcos abaixo, cortava para a Levada; parava em frente da Fonte da Prata e aí saía a primeira objurgatória do Jeitoso: ”Água é trampa; sr. presidente-capitão, o que cá manda, atire esta porcaria abaixo!”. Entretanto, o cãozito rosnava e uivava. A mulher, sempre silenciosa, parava quando o Jeitoso o fazia e seguia-o quando este retomava a marcha. Atravessada a Levada e a Ponte, só com cantorias, desembocavam na rua Larga, a rua dos ódios do Jeitoso, que a subia vituperando cada morador ou lojista. O porquê desta férula verbal, nunca o soube, tanto mais que ele abria uma excepção: enaltecia o colégio e as lindas meninas do bibe. Assim como o Oliveirinha, que só ali latia alegremente. No resto do percurso, rosnava e uivava ferozmente.
Subida a rua dos ódios do Jeitoso, este ia, já silencioso, até ao portão da Quinta do Lobo. Sentava-se sob uma palmeira, encostava-se ao seu tronco escamoso e adormecia beatificamente. O Oliveirinha deitava-se à frente e vigiava o sono do companheiro de peregrinação, rosnando, irado, quando alguém se aproximava. A velha perdia-se de imediato no canavial que ia até a Nabão. A festa acabara!
O rafeiro Oliveirinha foi um cão vadio, mas livre. Nunca lhe puseram coleira ou açaimo e, também, nunca foi apanhado pela rede da Pecuária. Tal como o companheiro de bebedeiras, o Manel Jeitoso, que, apesar das cantigas brejeiras, das asneiras que lançava nos mornos ares da cidade e das violentas diatribes que atirava aos concidadãos, nunca foi preso… E, não esqueçamos, eram tempos em que dar um beijo à namorada, na rua, dava prisão.

FranSilva
(tomarense investigador e contador de coisas nabantinas)

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